e não enquanto arte
educadora.
Walter Benjamin2
Quando teatro e educação
ocupam o mesmo lugar no
espaço
Flávio Desgranges1
2
A experiência de espectador
Tomar a experiência
artística enquanto relevante atividade
educacional constitui-se em
proposição que vem sendo
investigada ao longo dos
tempos, e que continua a estimular o
pensamento e a atuação de
artistas e educadores
contemporâneos, já que as
respostas para esta questão
apresentam-se enquanto
formulações históricas, apropriadas
para as diversas relações
estabelecidas entre arte e sociedade
nas diferentes épocas. O
pensamento acerca do valor educacional
da arte está centrado, em
nossos dias, tanto no âmbito da
concepção de propostas que
possam valer-se desse potencial
próprio à atividade
artística, quanto no desafio de tentar elucidar
3
em que medida a fruição da
arte pode, por si, ser compreendida
enquanto atividade
pedagógica.
Começaremos esta nossa
conversa justamente sobre este
último aspecto do tema:
como pensar a arte enquanto proposição
educacional nos dias que
correm? Enfocaremos, mais
detalhadamente, o teatro,
na tentativa de refletir sobre como,
de acordo com as
especificidades próprias a esta arte,
compreender esta questão.
Tornou-se bastante comum o teatro
ser apontado
enquanto valioso aliado da
educação, a freqüentação a
espetáculos ser indicada,
recomendada como relevante
experiência pedagógica.
Este valor educacional intrínseco ao
ato de assistir a uma
encenação teatral, contudo, tem sido
definido, por vezes, de
maneira um tanto vaga, apoiada em
chavões do tipo: teatro é
cultura. Outras vezes, percebido de
maneira um pouco
reducionista, enfatizando somente suas
possibilidades didáticas de
transmissão de informações e
conteúdos disciplinares, ou
de afirmação de uma determinada
conduta moral.
Que outras respostas vêm
sendo concebidas na tentativa
de compreender a
experiência proposta ao espectador
enquanto atividade
educacional? Seria possível à arte teatral
desempenhar tal tarefa sem
apagar ou esmaecer a sua chama
artística? O teatro pode
ser, de fato, educador enquanto arte?
Em que medida?
4
Crianças da periferia
Interessado em investigar
mais profundamente esta questão,
o educador francês Philippe
Meirieu realizou, em 1992, uma
pesquisa que se mostrou
bastante rica e reveladora, com crianças
extremamente
desfavorecidas, habitantes da periferia da cidade
deLião. Em entrevistas
realizadas com estes meninos, que tinham
entre 6 e 12 anos, o
educador percebeu que uma das
características destas
crianças, “que se sentem fracassadas
pessoal e socialmente, é a
absoluta incapacidade de pensar uma
história, de pensar a
própria história” (Meirieu, 1993, p. 14).
Meirieu esclarece que,
quando conversamos com estas
crianças e lhes pedimos
para falar de si, contar a sua história,
percebemos a sua grande
dificuldade em se referir ao passado,
mesmo o passado recente, em
articular a linguagem para falar
da própria vida. Esta
dificuldade revela tanto a pouca aptidão
para criar compreensões
possíveis para os fatos do cotidiano
quanto para atribuir
sentido à própria existência. A falta de
condições para compreender
o passado indica a dificuldade de
situar-se no presente e de
projetar-se no futuro.
O educador, analisando as
entrevistas feitas com estas
crianças, aponta que, mesmo
as mais velhas, são incapazes, por
exemplo, de utilizar
algumas das expressões tão comuns e
fundamentais para dar
sentido à vida, tais como: “foi a partir
deste momento que eu
compreendi”, “teve um momento em
minha vida que aconteceu
isto e me levou a decidir isto”, “eu
descobri que”, etc. A
pesquisa aponta, ainda, que estes meninos
5
utilizamfreqüentemente o
“você”, e o “a gente”, para falar de
si, e quase nunca o pronome
“eu”, como se não se sentissem
autorizados a reconhecer a
própria capacidade de construir e
compreender os fatos que
compõem a sua história, tornando-se
autores e sujeitos desta
história.
Meirieu ressalta, contudo,
que, das crianças entrevistadas,
aquelas habituadas a
freqüentar salas de teatro, de cinema, e a
ouvir histórias demonstram
maior facilidade de conceber um
discurso narrativo, de
criar histórias e de organizar e apresentar
os acontecimentos da
própria vida. A investigação indica, assim,
que, quem sabe ouvir uma
história, sabe contar histórias. Quem
ouve histórias, sendo
estimulado a compreendê-las, exercita
também a capacidade de
criar e contar histórias, sentindo-se,
quem sabe, motivado a fazer
história.
No teatro, por sua vez, uma
narrativa é apresentada valendo-se
conjuntamente de vários
elementos de significação: a palavra, os
gestos, as sonoridades, os
figurinos, os objetos cênicos, etc. A
experiência teatral desafia
o espectador a, deparando-se com a
linguagem própria a esta
arte, decodificar e interpretar os diversos
signos presentes em uma
encenação. Cada um destes elementos
de linguagem colabora para
a apresentação da história, e cabe ao
espectador articular e
interpretar este conjunto complexo de signos,
que se renova a cada
instante. Este mergulho no jogo da linguagem,
que provoca o espectador a
elaborar uma compreensão destes
variados elementos
lingüísticos propostos em uma montagem
teatral, estimulam-no a
exercitar e a apropriar-se desta linguagem.
6
O mergulho na corrente viva
da linguagem, e a pesquisa
do educador francês nos
indica isto, acende a vontade de lançar
um olhar interpretativo
para a vida, exercitando a capacidade
de compreendê-la de uma
maneira própria. Podemos conceber,
assim, que a tomada de
consciência se efetiva como leitura de
mundo. Apropriar-se da linguagem
é ganhar condições para
essa leitura.
Linguagem que é intrínseca
à própria história, já que o
discurso histórico é sempre
uma narrativa. A história está viva
no discurso vivo. Fazer
história é contar história, pois, “na medida
em que o homem só pode
receber a história numa transmissão,
a história condiciona e
mediatiza o acesso à linguagem” (Kramer,
1993, p. 65). Assim,
apropriar-se da linguagem é apropriar-se
da história, conquistando
autonomia para interpretá-la,
compreendê-la e modificá-la
ao seu modo.
A linguagem se revela,
assim, instrumento precioso, não se
limita apenas a ser veículo
da história, mas ela faz história. Para
fazer e refazer a história,
portanto, é preciso sentir-se estimulado
a construir e reconstruir a
linguagem. A concepção e
transformação da história –
pessoal e coletiva – é um embate
que se efetiva nos campos
da linguagem.
Os ovos da experiência
Na tentativa de compreender
a atitude proposta ao
espectador teatral enquanto
experiência educacional, podemos
recorrer ao enfoque sutil
presente na alegoria benjaminiana
7
(Benjamin, 1993), que
sugere que o ouvinte de uma história –
ao ouvi-la, compreendê-la
em seus detalhes e empreender uma
atitude interpretativa –
choca os ovos da própria experiência,
fazendo nascer deles o
pensamento crítico. A imagem de chocar
os ovos da própria
experiência está relacionada com a idéia de
que o espectador, para
efetivar uma compreensão da história
que lhe está sendo
apresentada, recorre ao seu patrimônio
vivencial, interpretando-a,
necessariamente, a partir de sua
experiência e visão de
mundo. Ao confrontar-se com a própria
vida, neste exercício de
compreensão da obra, o espectador revê
e reflete sobre aspectos de
sua história e os confronta com a
narrativa com a qual se
depara, chocando os ovos da experiência
e fazendo deles nascer o
pensamento crítico; pensando
reflexivamente acerca da
narrativa, interpretando-a, e também
acerca de sua história, do
seu passado, revendo atitudes e
comportamentos, estando em
condições favoráveis para, quem
sabe, efetivar
transformações em seu presente, e – levando-se
em conta a perspectiva de
um processo continuado de exercício
de sua autonomia crítica e
criativa – assumindo-se enquanto
sujeito da própria
história, tornando-se capaz de (re)desenhar
um projeto para o seu
futuro.
A arte de ouvir histórias
A educadora Sonia Kramer, a
partir de uma interpretação
possível para a fábula de
Xerazade, concebe rica metáfora,
que nos auxilia na
tentativa de compreender as formulações
8
benjaminianas acerca da
importância da arte de narrar e
ouvir histórias:
Ao descobrir que sua esposa
o traía, o rei Xeriar manda que
a executem. Vai além:
furioso e possuído pelo desejo de vingança,
ele planeja matar todas as
mulheres com quem se casar para
não mais se arriscar a ser
traído... E assim o faz. Dia após dia,
uma jovem diferente é
trazida pelo vizir aos aposentos de Xeriar.
Este, ao final da noite de
núpcias, ordena que a matem. Eis que
Xerazade, a filha do vizir,
persuade seu pai a levá-la ao palácio e
entregá-la a Xeriar; tem
ela um plano para vencer a morte – a
sua e a de outras mulheres
– que o rei quer impor. Xerazade,
que passara toda a sua vida
ouvindo parábolas e que aprendera
a conhecer a vida pelas
histórias contadas por seu pai, planeja
vencer a morte contando
histórias.
É sua irmã – Duniazade –
quem a ajuda na primeira noite:
conforme haviam as duas
combinado, Duniazade vai se despedir
deXerazade e pede que a
irmã lhe conte uma última história.
Xerazade se dirige então ao
rei, e roga que lhe permita atender
ao pedido da irmã.
Recebendo a permissão, naquela mesma noite
Xerazade começa a contar
uma história e com grande habilidade
a interrompe, subitamente,
de forma a aguçar a curiosidade do
rei. E assim, de história
em história, continuando o enredo,
desviando-o e interrompendo
a cada noite a narrativa, Xerazade
envolve o rei, ganha a sua
confiança, desperta seu interesse em
mantê-la viva para que
possa ouvir a continuidade da história.
9
Xerazade vence a morte,
então, contando histórias, noite após
noite, para Xeriar:
histórias misteriosas, cativantes, atraentes.
Histórias que se misturam e
interpenetram. Vai vivendo, narrando,
tem filhos com Xeriar,
cria-os. Até que o rei, nela confiante, a liberta
da ameaça.
O trunfo de Xerazade e a
razão de seu triunfo é, portanto,
a narrativa (Kramer, 1993,
p. 192).
Podemos afirmar,
construindo uma leitura particular da
fábula, que o rei Xeriar,
ao ouvir as narrativas, chocou os ovos
da própria experiência,
fazendo nascer deles o pensamento
crítico. Ouvir a contação
das histórias constituiu-se, neste sentido,
em vigorosa experiência
pedagógica para o rei, que, à medida
que ia compreendendo as
tramas, reportava-se à própria
existência; ao passo que
interpretava as histórias narradas, revia
criticamente aspectos de
sua vida, tomando consciência da
própria história, estando,
assim, em condições de transformá-la.
A experiência artística se
coloca, deste modo, como
reveladora, ou
transformadora, possibilitando: a revisão crítica
do passado; a modificação
do presente; e a projeção de um
novo futuro.
Olhar a arte, ver a vida 3
Há alguns anos, tive a
oportunidade de realizar uma
experiência que me foi
bastante esclarecedora acerca da relação
entre arte e educação, e
que fez acender uma possível maneira
10
– talvez complementar à
abordagem que fizemos até então – de
compreender a arte como
sendo educadora enquanto arte, e
não necessariamente
enquanto arte educadora.
Numa visita ao Museu
D’Orsay, na cidade de Paris, local onde,
me contaram, teria
funcionado, outrora, uma estação de trem,
eu percorria as grandes
galerias do segundo andar, de pé-direito
bastante alto e paredes de
concreto. Passeava por um dos setores
dedicados à exposição
permanente do museu, onde estavam
localizadas diversas
pinturas impressionistas. Uma profusão
delirante de quadros de
Gauguin, Cézanne, Van Gogh, Seurat,
que exploravam as
qualidades óticas da luz e da cor, e
despertavam intensas
emoções. As telas pareciam exalar os
perfumes das paisagens que
retratavam. Um pequeno descuido
já nos deixava ouvir o
cantar das cigarras nos campos de sol
escaldante, ou o ruído
silencioso dos rios margeados por arbustos
em variados tons de verde e
leves pinceladas de violeta.
A visitação seguia pelas
muitas galerias fechadas, quando,
no meio de uma das salas
surge, surpreendente, uma janela
que nos deixava ver, lá
fora, o entardecer da cidade, tendo
como fundo um céu azul
cravejado por nuvens esparsas,
recortado pelos pequenos
prédios parisienses. Postei-me diante
da janela durante longo
tempo e percebi que não estava só.
Vários dos visitantes
permaneciam estáticos diante dela,
olhando para aquela
paisagem como se observassem uma
pintura, uma obra de arte.
Afastei-me da janela, sentei-me em
um dos bancos próximos e me
ative à reação das pessoas, à
11
relação que estabeleciam
com a paisagem que surgia pela
vidraça, enquanto pensava
na faculdade da arte de nos
sensibilizar, em como a
contemplação daquela seqüência de
quadros havia provavelmente
estimulado os visitantes a lançar
um olhar estetizado para o
mundo lá fora, em como a relação
com as obras propiciava,
ainda que por instantes, que os
contempladores fruíssem a
existência como uma experiência
artística. Os visitantes
entravam e saíam daquela galeria; o
movimento em direção à
janela e a relação com a paisagem
parisiense repetiu-se por
longo período, até que me retirei da
sala e do museu, não sem
guardar cuidadosamente na memória
aqueles que para mim foram
intensos e raros momentos.
O principal aspecto, que
gostaria de ressaltar, da relação
dos visitantes com as obras
de arte e com a paisagem vista
pela janela, que me chamou
a atenção foi, sem dúvida, a
capacidade da arte de
provocar e, porque não, tocar os
contempladores,
sensibilizando-os para lançar um olhar
renovado para a vida lá
fora.
As renovações cênicas e a
participação do espectador
O surgimento do teatro
moderno, em fins do século XIX e
início do XX, é proveniente
de dois fatores fundamentais: o
desenvolvimento científico
e as mudanças na estrutura social,
política e econômica.
12
As novidades científicas e
o desenvolvimento tecnológico
deste período acrescentaram
ingredientes de grande importância
para as transformações
teatrais, proporcionando uma verdadeira
revolução cênica. A
tecnologia – e a invenção da lâmpada elétrica
é um marco fundamental –
permitiu redimensionar o palco,
iluminando a cena,
inventando sonoridades, tonalidades,
profundidades,
multiplicando sensações.
Por outro lado, assim como
as ciências naturais aprofundaram,
como nunca, os seus conhecimentos
sobre as
condições de vida do homem
neste planeta, a realidade
político-social foi
dissecada e compreendida pelas ciências
humanas. A compreensão das
engrenagens sociais ampliou
a consciência da sociedade
sobre os seus próprios processos.
O movimento artístico,
dentre eles o teatro, entrou em
consonância com este
momento histórico. O conhecimento
dos, agora aparentes,
mecanismos sociais requeria a
formulação de novas
concepções teatrais; a cena passou a
investigar suas
configurações internas, buscando linguagens
que possibilitassem um
diálogo efetivo com a realidade em
transformação.
Movidos pelos
questionamentos político-sociais de seu
tempo, os encenadores
modernos inauguram, então, a
preocupação acerca de uma
questão fundamental para o teatro,
e que movimenta os artistas
teatrais até os dias de hoje: qual a
relação do espectador com o
espetáculo? E é em função dessa
questão que surgem as
diversas inovações cênicas, pois os
13
encenadores parecem
dispostos a movimentar esta relação, a
“sacudir” os espectadores
nas poltronas.
Dá-se, neste período, uma
grande reviravolta em toda a arte
dramática; transformações
que se operam no espaço cênico e
marcam a revisão da própria
função do teatro na sociedade,
passando justamente pelo
questionamento e a investigação
acerca das possibilidades
de comunicação entre palco e platéia.
As respostas formuladas
pelos artistas teatrais desde então
são as mais variadas, na
tentativa de propor uma relação ativa,
efetiva com a platéia.
Percebe-se que provocar a
capacidade crítica dos
espectadores constitui-se
em desafio central para os encenadores
modernos, propondo que a
platéia não se perca em um
envolvimento emocional
apassivador, abandonando-se à corrente
da narrativa, mas
despertando-lhe a vontade reflexiva. O teatro,
para isso, deve ser
apresentado enquanto fato teatral e não
enquanto fato real, ou
evento que pretenda convencer o
espectador que está diante
da própria vida. Ao contrário, para
permitir uma reflexão
produtiva acerca da vida, torna-se
necessário que o teatro
assuma a sua teatralidade, assumindose
enquanto acontecimento
artístico diante do espectador. Não
se trata, pois, de
apresentar uma cena como se fosse real, mas
de mostrá-la assumindo seu
caráter artístico.
Este pensamento foi
especialmente defendido pelo
encenador e dramaturgo
alemão Bertolt Brecht – e influencia
diversos encenadores desde
então –, que apontava que, ao
14
invés de consumir a
atividade do espectador através de forte
envolvimento emocional, a
arte teatral deveria despertar a
sua atividade,
proporcionando-lhe conhecimentos advindos
do pensamento sobre aquilo
que está sendo apresentado em
cena. O espectador estaria,
assim, sendo contraposto à ação
e não transportado para
dentro dela. Para isso, torna-se
fundamental que o palco se
mostre como cena teatral e não
como uma fatia da vida.
Brecht contrapõem-se, desta
maneira, ao teatro realista, em
voga na virada do século
XIX para o XX, e defende que, para
assumir-se enquanto arte, o
palco precisaria deixar à mostra o
seu maquinário, o seu
funcionamento. Assim, a cena deveria
apresentar-se
desconstruída, deixando à vista cada pedaço que
a constitui. O encenador
precisaria deixar claro para o espectador
os recursos que utiliza em
cena, de maneira que cada um dos
elementos cênicos – a luz, o
cenário, as músicas, etc. – tenham
independência sobre os
outros, possuam voz própria. Ou seja,
Brecht apresenta um teatro
desnudado, que revela os
mecanismos utilizados –
refletores de luz, maquinário
cenográfico, etc. –,
retirando as tapadeiras, rotundas e tudo o
que possa esconder a
construção e o funcionamento dos objetos
que constituem a cena,
evitando o ilusionismo e assumindo a
teatralidade da encenação.
O palco rasga as cortinas, porque
quer revelar as engrenagens
teatrais e sociais.
Os recursos cênicos
utilizados neste teatro épico moderno,
idealizado por Brecht na
primeira metade do século anterior,
15
têm o intuito de afastar o
espectador da ação dramática,
interrompendo a corrente
hipnótica e possibilitando a sua atitude
crítica. “O espectador não
deve viver o que vivem os personagens,
e sim questioná-los”
(Brecht, 1989, p. 131). O encenador alemão
propõe, assim, que o
espectador se distancie e reflita sobre o
que vê, ao invés de
entregar-se a um envolvimento emocional
que inviabilizaria o raciocínio.
Este efeito de distanciamento é a
viga mestra do teatro
brechtiano.
Alguns encenadores, por sua
vez, em busca de uma efetiva
participação dos
espectadores, sem abandonar a reflexividade
proposta ao público, vão
construir espetáculos que estimulem
imaginativamente o
espectador, concebendo cenas que
provoquem a platéia a
exercitar isto que o encenador
contemporâneo Peter Brook
chama de “músculo da imaginação”.
A imaginação é um músculo,
e ela fica muito contente em
jogar o jogo. Eu posso
tomar, por exemplo, esta garrafa plástica
e decidir que ela será a
Torre de Pisa. Eu posso jogar com isto,
deixá-la inclinada,
experimentar tombá-la, quem sabe deixar que
ela desmorone, se espatife
no chão... Nós podemos imaginar
isto no teatro, ou na
ópera, e a garrafa poderia criar uma imagem
mais forte que a imagem
banal dos efeitos especiais no cinema,
que reconstituem, a custa
de milhões, uma torre verdadeira,
um verdadeiro tremor de
terra, etc. A imaginação, este músculo,
ficaria menos satisfeita
(Brook, 1991, p. 41).
16
Na segunda metade do século
XX, especialmente,
observamos uma retomada,
por parcela significativa de
encenadores, de aspectos
artísticos próprios às práticas teatrais
antigas e populares – como
as montagens teatrais ao ar livre
realizadas na Idade Média
–, o que representa uma tentativa de
reativar a relação do
espetáculo com o público, ou seja, reanimar
a cerimônia teatral. Estas
tentativas de retomar uma comunicação
mais direta e eficaz com o
público, geralmente realizam-se
buscando espaços
alternativos: ruas, metrôs, bares, fábricas,
escolas, hospitais, etc.
Assim, na esteira dos
movimentos contraculturais que
eclodiram neste período,
várias trupes, com uma produção
marcada por forte teor
ideológico, concentraram seus esforços
na difusão de espetáculos
para um público o mais amplo possível,
com o objetivo de
implementar uma ação política de
conscientização por meio da
arte teatral. Os grupos visavam à
utilização do palco como
espaço para a discussão das questões
que afligiam nossas sociedades,
convidando os espectadores a
participarem destes
debates.
Estes artistas,
impulsionados pelo cansaço diante das práticas
teatrais conhecidas e pelo
desejo de extinguir o fosso que separava
o palco da platéia,
conceberam métodos bastante particulares
que tinham o objetivo de
provocar a atitude do público diante
dos fatos trazidos à cena.
Estas formas dramáticas continham,
assim, uma proposta
pedagógica atrelada ao interesse artístico e
estavam calcadas, em grande
parte, na intervenção direta da platéia
17
no evento artístico. Esses
experimentos permitiram o
redimensionamento da
posição do espectador na sua relação com
a obra teatral 4.
Propondo uma nova maneira
de compreender a atuação
política, a ação por meio
do teatro, um instrumento
revolucionário, provocaria
a potência imaginativa e
transformadora do público.
As formas artísticas mais
surpreendentes e
contraditórias surgiram neste período, todas
encaixadas em um movimento
comum, de um radicalismo com
grande vitalidade, em
permanente contestação à sociedade e
à cultura dominante, que
desconstruía os espaços teatrais
tradicionais e transbordava
pelas ruas e outros locais à procura
de espectadores, diminuindo
a distância entre vida teatral e
vida social.
O papel do espectador no
evento teatral
No início do século XX,
como vimos, o teatro se vê diante de
indagações acerca do
sentido desta arte, em seu diálogo com a
sociedade, que operam uma
espécie de “revolução copernicana”
no universo da cena, e que
deflagra profundas transformações
na relação da cena com a
sala, do palco com a platéia. Se, em
sua revolução cosmogônica,
Copérnico compreende que a Terra
não poderia ocupar o centro
do universo, as transformações
operadas na arte teatral
tiram o texto de uma posição
necessariamente central no
espetáculo teatral, conferindo igual
importância aos demais
elementos constituintes da encenação
18
(os objetos de cena, os
gestos do ator, as sonoridades, a
iluminação etc.). A partir
de então, o texto deixaria de ser o
principal aspecto da cena,
e todos os elementos de linguagem
poderiam contribuir
igualmente para apresentar teatralmente
um acontecimento aos
espectadores. Estas transformações
conferem ao espectador um
papel fundamental no evento teatral,
já que cabe a ele
decodificar, relacionar e interpretar o conjunto
complexo de signos
propostos em um espetáculo.
Esta mudança de eixo
possibilita uma nova compreensão
acerca do papel do
espectador no ato artístico, influenciando
fortemente a criação
teatral. Os artistas passam, desde então, a
conceber seus espetáculos
tendo em vista propostas de
encenação que contemplem
uma efetiva atuação dos
espectadores, tirando-os de
uma observação tida como passiva
para propor-lhes atividade
em sua relação com a cena. Estas
investigações artísticas
permanecem vigorosas por todo o século
passado e continuam a
motivar a criação teatral contemporânea,
resultando em propostas as
mais diversas, que questionam desde
as variadas possibilidades
de compreensão do que seria o espaço
teatral, até as propostas
mais ousadas de participação do
espectador no evento.
As pesquisas acerca do
papel do espectador teatral têm em
Bertolt Brecht uma figura
chave. Isto porque o encenador alemão,
retomando o que foi
indicado acima, indica e defende a existência
de uma arte do espectador,
apresentando a idéia de que a
participação deste último
precisa ser compreendida como um
19
ato criativo, produtivo,
autoral. O que, em última instância, além
de outras possíveis linhas
de análise, quer dizer o seguinte: se a
atuação do espectador
precisa ser tomada a partir de uma
perspectiva artística,
precisa-se também afirmar a necessidade
de formação deste
espectador. Ou seja, se a capacidade para
analisar uma peça teatral
não é somente um talento natural mas
uma conquista cultural,
quer dizer que esta capacidade pode e
precisa ser cultivada,
desenvolvida. Tal como os criadores da cena,
os espectadores também
precisam aprender e aprimorar o seu
fazer artístico.
As transformações operadas
no universo da arte teatral,
promoveram, portanto, além
de transformações na criação
teatral, profundas
alterações no recém-reconhecido campo da
recepção teatral. Isto
porque passou-se a compreender, como
vimos, que a relação do
espectador com a obra teatral não é
somente a de alguém que
está lá para entender algo que o artista
tem para dizer. Mais do que
isto, esta fundamental mudança de
eixo permite-nos
compreender que a participação do espectador
é a de alguém que está lá
para elaborar uma interpretação da
obra de arte, para uma
atuação que solicita sua participação
criativa. Ou seja, os
significados de uma obra não estão cravados
nela como algo inalterável,
que está lá e precisa ser entendido
pelo espectador, pois se
trata menos de entendimento dos
significados e mais de
construção de significados, que são
formulados pelo espectador
no diálogo que trava com a obra. O
que nos permite apontar que
a atitude última do evento teatral
20
se opera no âmbito do
espectador, e que, se este não empreender
o papel autoral que lhe
cabe, o fato artístico não terá
efetivamente acontecido.
Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Obras
escolhidas: magia e técnica, arte e
política. São Paulo,
Brasiliense, 1993.
BRECHT, Bertolt. Estudos
sobre teatro. Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1978.
.Ecritssurlethéâtre 1.
Alençon, L’Arche, 1989.
DESGRANGES, Flávio. A
pedagogia do espectador. São Paulo,
Hucitec, 2003.
KRAMER, Sonia. Por entre as
pedras: arma e sonho na escola.
São Paulo, Ática, 1993.
MEIRIEU, Philippe. Le théâtre et la construction de la
personalité de l’enfant: de
l’événement à l’histoire. In:
CRÉAC’H,
M. Les enjeux actuels du théâtre et ses rapports avec le public.
Lyon, CRDP, 1993.
Vídeo sugerido para o
debate acerca da questão tratada:
O gosto dos outros.
21
Notas
1. Flávio Desgranges é
Doutor em Educação pela USP. É diretor teatral e
professor do Departamento
de Artes Cênicas da ECA-USP.
2. Walter Benjamin (1892 –
1940), filósofo alemão.
3. Esta experiência é
retratada com maiores detalhes pelo autor no
seguinte livro: DESGRANGES,
Flávio. A Pedagogia do Espectador. São
Paulo, Hucitec, 2003.
4. Dentre os relevantes
movimentos teatrais que surgiram neste período,
com o objetivo de estimular
a platéia para uma tomada de posição crítica
frente às questões
apresentadas, destacam-se, entre tantos outros: as
experiências do Living
Theatre, que exerceram forte influência em muitos
outros países; as técnicas
do Teatro do Oprimido, que foram aplicadas
primordialmente na França e
no Brasil, e alcançaram reconhecimento
em diversas nações. Para
melhor conhecimento destes experimentos,
pode-se consultar as
seguintes obras: sobre o Living Theatre, ver
ROSENFELD, Anatol. Prismas
do Teatro. São Paulo, Perspectiva, 1993;
sobre o Teatro do Oprimido,
ver BOAL, Augusto. Teatro do Oprimido.
Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1988; para o melhor conhecimento
de outras realizações
teatrais do período, ver ROUBINE, Jean-Jacques. A
Linguagem
da Encenação
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